Há cada vez mais pessoas que não vivem, sobrevivem. Passam o dia num esforço terrível de se agacharem perante os outros para se conseguirem manter de pé, dispõem-se a fazer coisas que jamais lhes passariam pela cabeça, como pedir. É um pedir que se distingue porque está longe das técnicas mais persuasivas da pedinchice, aproximam-se da indiferença ou das misérias camufladas alheias como se tivessem vergonha de respirar o mesmo ar daqueles a quem estendem a mão. Pedir para comer, a suprema humilhação de quem não tem habilitações, conhecimentos, ou qualquer tipo de destreza que possa ser trocada por dinheiro. A que fazia limpezas para meter pão à frente do filho e que lhe vai faltando o trabalho porque as "senhoras" passaram a tratar elas mesmas dessa tarefa, a outra que só engomava, aquela que perdeu o lugar para uma prostituta mais nova. Não meninos, não é Sebastião Salgado de cordel, é já ter visto as pessoas noutras condições, noutras ilhas menos ameaçadas pela submersão completa.
Antes de ontem vi um homem ser parado pela polícia à saída de um supermercado, levava dentro das calças dois caldos "Knorr"... Reparei na vergonha do homem e no polícia desarmado perante a situação. E no incómodo que se apoderou dos demais que estavam na bicha da caixa. Não era mal-estar porque alguém se atravessara à frente da rotina diária, era outra coisa. O silêncio.
Sem qualquer expressão de vitória, o guarda que complementava o soldo fazendo de segurança devolveu o artigo às mãos de uma funcionária que parecia mais comprometida que o assaltante. O homem que havia sido privado dos seus intentos foi conduzido à rua - não era um "habitué", esses "são conhecidos e devidamente vigiados" quando deambulam por entre as prateleiras.
Não vislumbrei por entre os olhares entrecruzados desaprovação pela atitude do polícia tornado juiz, não li ali a raiva justiceira das caixas de comentários dos jornais. A exibição dos dois cubinhos daquela mistela que empresta à água o sabor da carne foram o castigo suficiente para o homem.
A "caridadezinha" foi um exercício que me habituei a ver quando era miúdo, na sopa que se dispensava a um que tinha deixado o braço direito no Ultramar, nas batatas que se embrulhavam num jornal para esconder a miséria de outra, separada, que vivia das limpezas. Vivi num país onde não havia Segurança para os mais pobres dos pobres. Onde as viúvas comiam do peixe solidário apanhado por camaradas do afogado. E rezas, muitas, as duas mãos unidas à frente dos lábios e olhos em baixo. Não havia Solidariedade mas Caridade. Salazar dava o exemplo lá do meio do seu galinheiro, "devia-se adoptar um pobrezinho". O pior de tudo: a filha-da-putice dos "inhos"!
As ondas hertzianas que atravessaram o ar mais limpo do Verão de 1974 trouxeram amiúde o "não vamos brincar à caridadezinha, festa, canastra e boa comidinha"... era o levantar dos olhos. Os mesmos olhos que vi baixarem-se outras vez diante de dois caldos "Knorr".
Pois bem, irmãos do infortúnio, os "inhos" estão de regresso. Cavaco é o seu presidente.
Este texto é uma versão mais cuidada de um comentário colocado no blogue "Arrastão" a propósito de um (excelente) post de Miguel Cardina.
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