14.5.09

Algo sobre o bairro da Bela Vista

O meio-ambiente faz o indivíduo. Está bem, “não apenas”, mas continua a ser determinante. A não ser que se considere que um indivíduo não é mais que uma herança genética identificada pela pigmentação da pele. Se assim for, deixem cair a máscara, cheguem-se à frente e levantem o braço, deixem sair o ódio que vos oprime. Para que possamos esmagar-vos os dentes antes que mordam os demais.

Há pessoas que de tanto viverem num buraco não consideram outra luz que não a da penumbra que lhes é familiar, são incapazes de levantar a cabeça e o punho e gritar que não querem viver ao nível da lama. São predadores, e os predadores só têm coragem de se fazerem aos mais fracos. Tal como os vermes nas fossas infectas, tiram partido do ambiente que infectam e não perspectivam outro mundo que não o seu buraco. Muito humanamente, adaptam-se, tiram partido e impõem aos outros o aconchego opressivo da sua lama a quem o destino faz partilhar o buraco. Para quem olha de longe com lentes de preconceito, os que vivem no buraco são todos iguais.

Os acontecimentos na Bela Vista têm como principais vítimas as pessoas que lá vivem, que querem viver, deixar viver e que gostariam que os deixassem viver. Não basta serem reféns de lutas por território de grupos, ainda têm de levar com o carimbo globalizador de “bairro problemático”. Seis mil habitantes, a maioria pobres economicamente, porque só um pobre de espírito se sujeitaria a viver naquelas condições com dinheiro para não o fazer. Uma tinta que nunca pegaria num qualquer condomínio fechado pago a peso de ouro, mesmo que se provasse morarem ali autores de saques mais elevados que o valor de todas caixas multibanco assaltadas pelos bandos da Bela Vista.

Quem comete um crime tem de ser julgado por isso, e cumprir pena de acordo. As pessoas da Bela Vista e arredores estão fartas de ver gente a ser detida num dia e a aparecer no outro, como se não se tivesse passado nada, ou que após a detenção apareçam com uma “escola maior”, porque a pena ou o internamento não serviram para mais do que a sociedade se vingar dos seus escolhos.

As pessoas estão cansadas de verem utilizar os mais novos como “escudos humanos” em actividades ilícitas de que os vizinhos são as primeiras vítimas, num jogo de integração grupal que tem os seus “heróis”. Quem deve integrar confunde ensinar a pescar com dar peixe e os mais fracos acabam abandonados a si próprios. Deixam que as serpentes choquem os ovos e depois queixam-se que saem víboras.

Sim, os miúdos, a esperança do bairro, os que ficam abandonados na rua porque os pais foram trabalhar na obra ou nas limpezas ou porque pura e simplesmente os pais lhes fazem o mesmo que lhes fizeram a eles. Os que até precisam de ser defendidos dos pais.

Os miúdos a quem os anúncios dos consumíveis à mão de semear e os modelos rascas da TV dizem mais que um professor ou alguém que queira fazer algo deles. O desafio dos que no bairro trabalham socialmente, dos que mendigam contra a indiferença das autoridades. Não é para todos.

Também não é para todos resistir quando a capacidade de acesso ao consumo (o que faz de nós “gente”) é inferior ao dinheiro ganho pela casa, quando se convive com a derrota diária de ver os pais num eterno ponto de partida, e as “vitórias” são uma espiral que se perde no calabouço.

Fazer com que os que “não têm outro remédio senão passar sem isso” passarem por meliantes, é uma ingratidão. Um desrespeito por quem quer ser gente num sítio onde até a arquitectura parece pretender o contrário.

Pior, o saber-se que a um preto que rouba lhe é negado o estatuto de “ladrão”. Preto”, ou “de cor” na “melhor” das hipóteses.

Para começar, que tal chamar “ladrão” aos pretos que roubam, tal como fazemos aos brancos. Ao fazê-lo estaríamos a dar um primeiro passo na “integração social” do bairro, por uma simples razão: tínhamos começado a ver o que sobrevive entre aquela arquitectura abjecta: Pessoas.

E, como é sabido, em todo o lado onde há pessoas, há-as boas e más. No bairro degradado da Bela Vista e nos condomínios milionários de Tróia.

3 comentários:

Anónimo disse...

Esta esquerda, a que eu pertenço, continua teimosamente a insistir nos mesmos erros; complacente, transigente e permissiva para com criminosos referenciados por vários crimes, que não hesitam em extorquir, maltratar e até matar cidadãos para saciarem os seus vícios e uma preguicite aguda, de que invariavelmente sofrem.
Não aprovo nem tolero o abate (assassinato) de seres humanos, seja em que circunstancia for. A polícia tem que ter formação, que lhe permita travar, parar ou prender o suspeito ou mesmo o criminoso, sem necessariamente atentar contra a sua vida. A polícia de um estado democrático, não pode descer ao nível dos criminosos.
E a esquerda a que pertenço não pode continuar a assobiar para o lado e a branquear situações como as ocorridas na Bela Vista. Quando a minha esquerda afirma que “um grupo de moradores da Bela Vista, em Setúbal, concentrou-se à porta da esquadra do Bairro para se manifestar. A polícia disparou para o ar para dispersar as pessoas.” Não está a ser séria porque omite deliberadamente a condição e as circunstancias em que decorreu essa concentração, bem como o seu peso quando comparado com o universo dos moradores do bairro. Mais; Antonino alvo dessa homenagem, estampada nas camisolas de uns quantos manifestantes não foi na sua curta vida, merecedor de tais homenagens.
Na verdade, Antonino foi também vitima, uma vítima desta sociedade… Mas enquanto vitima Antonino não trilhou caminhos que conduzissem à justiça, antes pelo contrário, Antonino fez outras vítimas. Se é verdade que os seus crimes pesam certamente menos que os crimes de colarinho branco de banqueiros e quejandos, tal não pode, apesar disso, ou por via disso mesmo, merecer o nosso aplauso. Muito menos o nosso silencio complacente.
No que confere aos acontecimentos da Bela Vista, neste caso em concreto, nada tenho a objectar em relação à actuação da polícia. A qual me pareceu adequada e proporcional aos acontecimentos. Nem mesmo quando alguns arruaceiros numa viatura, passaram em frente à esquadra do bairro e lançaram objectos incendiários contra as instalações policiais, ou quando dispararam tiros contra a esquadra policial, nem mesmo nessas circunstâncias a policia se excedeu. Curiosamente não há da nossa parte nenhuma referência ao facto.
Ultimo: Ser revolucionário e ser de esquerda não significa pactuar, tolerar ou silenciar o crime, mesmo que ele tenha a sua origem nas injustiças sociais.

CausasPerdidas disse...

Concordo em termos gerais com a sua intervenção. Os predadores devem ser tratados como o que são: bandidos. O objectivo do meu texto era o de distinguir entre essa gente que se alimenta da lama e os outros que querem viver e deixar viver. Neste sentido, mantenho, não há que confundir todo um bairro com um grupo de bandidos que sequestra em primeiro lugar os que querem viver condignamente sem estarem sujeitos à luta entre arruaceiros.
Concordo também, a crer no que vi e li, que a polícia teve a contenção e inteligência necessárias para lidar com aquela situação em concreto - ainda bem, porque é coisa que não é costume acontecer.

Anónimo disse...

Revendo "coisas antigas" mas que continuam em "on" na cabeça dos, pelos vistos, poucos que presumem preocupar-se com o mundo em que vivem "esbarrei" com este texto de Causas Perdidas que não conhecia mas que achei esplêndido.
Toca em todos os "pontos G's" do pacote de problemas da Bela Vista de forma quase poética mas firme e contundente causando impressão no intimo daqueles que já lá foram, que já provaram aquele "guisado" mal amanhado pelos aprendizes de feiticeiros sociais que o pariram e mal cozido pelos mestres escolas que a seguir vieram.
Falta saber, para além daquilo que Causas Perdidas e Anónimo disseram - com eles concordo em absoluto - o que nos trará o futuro se nada for mudado, se os Sócrates, as Marias das Dores, os Jorges, as Teresas, os Albéricos, os Joões e todos os outros entre os quais eu, nós, nada fizerem que mude, de uma forma sustentada e duradoura, a vida daquela gente cuja maioria merece, sem qualquer dúvida, uma existência melhor.