13.6.06

Mesmo preso por arames, desde que funcione…


Quem frequentou os antigos cursos de montadores-electricistas lembrar-se-á das horas passadas em “laboratório” onde, dentre outras matérias ligadas ao manejo de ferramentas e equipamentos, se aprendia a “passar cabo”.

Uma coisa tão prosaica como fazer prender um cabo à fachada de uma casa para alimentar outra, levar a energia de uma caixa até fazer funcionar um equipamento eléctrico, um motor, o que fosse, tinha regras: era necessário saber escolher os diâmetros dos tubos de acordo com as secções dos condutores, as “abraçadeiras” de fixação eram colocadas milimetricamente, e as curvas dos tubos eram cuidadosamente moldadadas para que em caso de avaria retirar um cabo do seu interior fosse a coisa mais simples do mundo.

“Indiferenciado”, aprendi com alguns electricistas da velha-guarda que um cabo instalado num edifício passava a fazer parte dele, podia desfeá-lo. Exigir apenas que qualquer coisa funcionasse era um fraco objectivo profissional, era “falta de arte”, falta de profissionalismo. Deste modo, o melhor trabalho não era o que funcionava mas o que funcionava e não se dava por ele a não ser para admirar a forma como passava despercebido.

Uns anos e uns cursos mais tarde apercebi-me que aqueles meus camaradas que me surpreendiam com a mestria como manejavam o alicate-de-pontas e o canivete de electricista tinham algo mais que brio profissional: intuitivamente, sabiam que uma intervenção num local público afecta as pessoas, empiricamente, falavam comigo de “design” e ergonomia.

Tinham mais espírito para isso do que muitos licenciados em que tropecei. Obreirista, eu?

Há tempos pintei o exterior da minha casa, e aproveitei para melhorar ainda mais o seu aspecto: juntei numa “calha-técnica” os vários cabos telefónicos que pendiam na fachada do edifício, cortando-o ao meio e dando-lhe um ar de local de festejos populares depois dos santos se terem ido embora.

Para a Telecom a minha intervenção também foi positiva: em caso de avaria remove a tampa da calha, tira cabo, mete outro, põe a tampa. Simples, não é?

Não foi.

Hoje apareceu-me à porta um dos muitos subempreiteiros da Telecom. Pretendia passar um cabo telefónico novo na fachada da minha casa, para substituir um que estaria avariado. “Substituir”, não é bem assim: a “obra” só falava em colocar um cabo novo e não em retirar o velho.

A modos que ficaria assim: a calha que eu diligentemente instalei ficaria a servir de caixão ao cabo velho, enquanto o cabo novo passaria, reluzente, …por cima da calha.

A explicação: a Telecom só lhe “paga a obra de colocar o cabo novo, mas não lhe paga o trabalho de retirar o velho”…

“A cidade está cheia de cabos velhos nas paredes”, disse-me o homem olhando-me como seu eu fosse um extraterrestre por entretanto ter achado que deixar cabos desactivados nas paredes só desfeia os edifícios – além de não conduzir o material velho ao sítio certo, a reciclagem. E, já agora, que poluem visualmente o ambiente urbano – esta parte não lhe disse, porque senão o tipo pensaria que eu tinha fugido do Júlio de Matos.

É obra: a Telecom, para pagar o menos possível pela “satisfação dos seus clientes”, está-se nas tintas para o aspecto estético da sua instalação; o empreiteiro não está para perder cinco minutos num “corta, corta e tira fora” para não perder dinheiro nas negociações que faz com a Telecom. Mas os cidadãos podem ficar a perder com as fachadas dos edifícios desvalorizadas esteticamente por cabos avariados.

O homem do empreiteiro era de certeza um precário que não tem outro remédio que fazer o que lhe mandam. Ouvi dizer por aí que depois do “downsizing” as acções da Telecom estão em alta…


PS: a foto ilustra um "trabalho" feito na Rua Casal das Figueiras, em Setúbal. É a parte menos matafórica do título deste post.

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