28.7.12

Bom-gosto e Cultura em Londres

Percorrendo a imprensa do dia seguinte, parece-me que há quase unanimidade: o espectáculo que precedeu a abertura oficial dos Jogos Olímpicos de Londres foi um êxito. Seduzidos pelas luzes, pelas escolhas musicais, pelo humor ou ainda pelo fogo-de-artifício, quase toda a imprensa gaba o esforço londrino.
Falam de tudo, menos da concepção marcadamente diferente evidenciada por Danny Boyle, da abordagem a léguas do discurso tipificado e chapa-cinco, género concurso de misses, do vago "ideal olímpico" e do mais que ocasional "paz entre todos os homens" e tal. Como se um espectáculo fosse só para olhar.

Ontem viu-se um exercício de bom-gosto onde se fugiu à tentação de fazer uma demonstração das actualizações tecnológicas ocorridas desde que há 4 anos Pequim deslumbrou o mundo com a sua demonstração de luz e cor.

Imaginado por Danny Boyle, um realizador de cinema britânico reconhecido pelo recente "Quem Quer Ser Milionário" mas onde constam outros títulos como "28 Days Later" ("28 Dias Depois", terror) e o cru objecto de culto "Trainspotting" (um filme sobre a temática do consumo de drogas), o espectáculo de abertura dos jogos de Londres ficou longe de ser uma tentativa britânica de superar o que em matéria de som e luz já havíamos visto.

Temi um exercício folclórico-luminescente dos  lugares-comuns que vemos na Comunicação Social... sei lá, um bailado de bobbies (a "simpática" polícia londrina que aparece em todos os bilhetes postais), a reivindicação do nascimento do futebol, um enaltecimento modernaço da nostalgia do Império, talvez mesmo o regresso-surpresa das "Spice Grils"... haverá "marcas" maciçamente mais consumidas pelos media no que ao made in Britain diz respeito?

Mas não, ontem fez-se um exercício de Cultura e até, com muito bom gosto e na linha do melhor humor britânico, de Ironia. Mesmo a parte mais "institucional", a mais referida pela Comunicação Social, foi tratada com humor, "colocando" a rainha num helicóptero e fazendo-a descer de um dessacralizado páraquedas sobre o estádio acompanhada pelo inevitável e sempre ao seu serviço James Bond. E as escolhas musicais, caramba, quase atiraram para o esquecimento os tops das tevês!

Ficou na memória o quadro inicial do bucolismo verde dos campos invadido pelas chaminés nascendo como cogumelos, foi espectacular. Mas com pessoas: camponeses obrigados à proletarização, capitalistas a tomarem conta das terras, trabalho infantil, lutas operárias, as sufragistas... nem os imigrantes vindos de ilhas do outro lado do planeta para alimentar as fábricas foram esquecidos, tal como a consequência mais trágica da luta pelos mercados e matérias-primas nos soldados da I Guerra Mundial...

E ainda algo que, percorrendo as páginas do jornais de hoje, vi quase esquecido, apesar de ter ocupado uma parte substancial do espectáculo: a ode ao "National Health Service", o serviço nacional de saúde britânico. Foi um quadro que culminou com a escrita, a luz, da sigla "NHS", um momento que o realizador fez questão de evidenciar ainda mais num plano "picado" sobre o estádio... Para quem não se lembra, foi imediatamente antes do aparecimento dos monstros que um exército de "Mary Poppins" veio afugentar...

Por que razão a comunicação social se esqueceu deste autêntico manifesto num programa que começou com algo como "Isto é Para Todos"? Cheira-me que será a mesma razão pela qual alguns países muçulmanos fizeram questão de não deixar que atletas-mulheres fossem a porta-bandeira do seu país: para não se dar ênfase ao que "não interessa".
Siga o espectáculo.

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