publicado no trissemanário "O Setubalense", na edição de 30 de Abril de 2012.
*Álvaro Arranja é setubalense e professor do Ensino Secundário.
Nascido numa família operária ligada à indústria conserveira,
tem vários livros publicados sobre a História do Movimento Operário Setubalense.
É actualmente um dos dois deputados municipais que o Bloco de Esquerda elegeu em Setúbal.
SETÚBAL na REVOLUÇÃO de 25 de ABRIL
Os acontecimentos do dia 25 de Abril de 1974,
ocorridos quase exclusivamente em Lisboa, desencadearam um pouco por
todo o país um conjunto de acontecimentos que transformaram um golpe de
estado numa revolução.
A Revolução de Abril abriu as comportas de uma
torrente social, durante décadas reprimida. O povo, como nas caricaturas
de Bordalo Pinheiro, sacudiu a canga e tornou-se protagonista,
surpreendendo o poder político e económico. Os movimentos populares
ultrapassaram enquadramentos partidários, sindicais, religiosos ou
outros.
Em Setúbal, a imprensa local (com particular
relevo para O Setubalense), dá o maior relevo aos reflexos da Revolução
na vida da cidade.
Logo nos dias seguintes a 25 de Abril tem
particular relevo o dia 1º de Maio. A toda a largura da 1ª página, O
Setubalense publica uma foto da Praça de Bocage totalmente cheia e
relata pormenorizadamente os acontecimentos do dia, com especial relevo
para o comício em que “intervieram Carlos Luís, Adilo Costa, Joaquina
Soares, Abílio Ferreira, Tito Soeiro e Dimas Pereira, a quem a população
aclamou com vibração”.
A nova realidade é reflectida nas páginas do
jornal. É o caso do primeiro espectáculo de canto livre em Setúbal. Diz o
jornal que decorreu a 26 de Maio, na Praça de Touros Carlos Relvas,
onde “José Afonso abre o sarau, seguido de Francisco Fanhais, com agrado
geral”.
Mas a singularidade de Setúbal no contexto da
revolução vai decorrer do chamado “poder popular”. Comissões de
moradores, trabalhadores, soldados e marinheiros, empresas ocupadas em
autogestão, cooperativas e outras formas organizativas, surgiram por
todo o país, sendo mais numerosas em zonas com uma tradição histórica de
lutas sociais, como é o caso de Setúbal.
Apenas quinze dias após 25 de Abril de 1974,
dão-se em Setúbal as primeiras ocupações. Habitantes de casas degradadas
da Cova do Canastro, ocupam habitações vagas do Bairro Marcelo Caetano,
bairro de “casas económicas” construído nos últimos anos da ditadura.
AS COMISSÕES DE MORADORES
Um dos movimentos populares mais significativos
no pós-revolução, foi o aparecimento das comissões de moradores. Em
Setúbal este movimento vai ter grande expressão. Embora possa ter havido
casos de manipulação partidária, estas comissões são na sua grande
maioria a expressão genuína de aspirações locais, fruto de um momento
histórico no qual as populações sentem que, face a um enfraquecimento do
poder do estado, é possível construir alternativas ligadas à resolução
dos seus problemas concretos.
A imprensa (os jornais de Setúbal O Setubalense e
Nova Vida) começa a referir-se a estas organizações em 22 de Julho de
1974, mencionando a eleição da Comissão de Moradores do Bairro da Azeda.
Em 18.2.75 constituem-se as Comissões de Moradores do Bairro da
Liberdade e do Bairro do Castelo Velho, sendo as primeiras a
legalizar-se e a inserir-se no SAAL.
A 23 de Julho de 75 é eleito um Secretariado das
Comissões de Moradores, do qual fazem parte os bairros: 25 de Abril,
Monte Belo, Baptista/Tebaida, Quatro Caminhos, Reboreda, Amoreiras,
Pescadores, Humberto Delgado, Maltalhado e Azeda.
Nas páginas de O Setubalense, um conjunto de reportagens dão-nos conta do trabalho de muitas Comissões de Moradores de Setúbal.
Em 13.8.75 fala-nos da Comissão de Moradores do
Bairro dos Pescadores. Um elemento da Comissão declara que “o Tenreiro
isolou os pescadores em bairros, mas nós queremos acabar com o ghetto e
criar um ambiente novo”.
No Bairro Salgado, em 20.8.75, o jornal refere a ocupação de um edifício no qual foi instalado um infantário.
No Bairro Humberto Delgado, a Comissão de
Moradores dinamizou a construção de zonas ajardinadas e de um parque
desportivo. Publica um jornal, a Voz do Nosso Bairro. Tem por objectivo
realizar cursos de alfabetização e organizar uma biblioteca.
A Comissão de Moradores do Bairro Alves da Silva
ocupou uma antiga fábrica de conservas abandonada, para instalar um
Centro Cultural e uma creche. A velha fábrica é limpa, removendo-se o
lixo e as maquinas há muito abandonadas. Um elemento desta comissão,
declara ao jornal em 9.7.75 que “as Comissões de Moradores e de
Trabalhadores terão de arrancar para tomar conta do poder”.
No Bairro de Troino, as habitações degradadas são
o principal problema. A Comissão de Moradores declara estar a tentar
resolver o problema do Pátio do Sérgio, tentando obrigar a senhoria a
fazer obras. Ocupou em conjunto com outras organizações, as antigas
instalações da Mocidade Portuguesa, onde foi instalada a Casa da
Cultura.
Ligada à acção das comissões de moradores, esteve
a luta dos “500$00”. Em 30 de Maio de 75, numa reunião de inquilinos
foi decidido limitar as rendas de casa na cidade a 500$00 por
assoalhada. Perante a oposição dos senhorios, os aderentes a esta luta
passaram a depositar a renda na Caixa Geral de Depósitos. Em 28 de Junho
de 75, uma notícia informa que já estão feitos mais de 3000 depósitos
de inquilinos aderentes a esta luta. A 14 de Julho de 75 um inquilino é
julgado em tribunal e tem a solidariedade dos moradores da cidade, em
manifestação à porta do Tribunal.
O PODER POPULAR
No Verão de 75 as reivindicações parcelares das
comissões de moradores ou de trabalhadores, são gradualmente
substituídas por um projecto global de tentativa de reorganização do
poder político. A 21 de Junho de 1975, o Conselho da Revolução, no seu
Plano de Acção Política, considerava que “a associação futura desses
órgãos unitários populares poderá vir a constituir embriões de órgãos ou
assembleias locais representativas dos interesses das populações”.
Em Setúbal, este projecto político alternativo é
posto em prática com a formação do Comité de Luta em 30 de Setembro de
75. O Comité de Luta é eleito por todas as Comissões de Moradores, de
Trabalhadores e de Soldados da cidade, e assume-se como um verdadeiro
órgão de poder.
Em 5 de Novembro de 75, O Setubalense relata uma
reunião do Comité de Luta, na qual são discutidos desde a tentativa de
saneamento de um militar progressista no Regimento de Infantaria de
Setúbal, a temas de urbanismo como a ocupação de casas e definição de
rendas ou a coordenação com o projecto SAAL, até à organização de um
Tribunal Revolucionário.
No auge deste forte movimento, os acontecimentos
de 25 de Novembro vão impor um refluxo no poder popular e no projecto
político alternativo assente na democracia directa.
Em Setúbal, um grande número de comissões de
moradores e trabalhadores continuará a sua actividade, mas o reforço do
poder do estado limitará decisivamente a sua acção. É simbólico o
abandonar da designação de Comité de Luta em 29 de Março de 1976,
substituído por Secretariado das Comissões de Moradores e de
Trabalhadores.
Era o princípio do fim de um período histórico.
Porém, podemos afirmar que apesar de não terem produzido rupturas
definitivas ou irreversíveis na estrutura social, Comissões de
Moradores, Trabalhadores e Soldados, empresas ocupadas em autogestão,
cooperativas e outras formas organizativas, marcaram a Revolução de
Abril.
Na Setúbal de 74-75, o povo ousou construir um
esboço de sociedade alternativa que, embora não concretizado, se destaca
na memória histórica das lutas populares do século XX português.
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