2.5.12

Memórias da "Cidade Vermelha"

Pelo seu inegável interesse, e com a devida vénia, reproduz-se aqui um texto de Álvaro Arranja*
publicado no trissemanário "O Setubalense", na edição de 30 de Abril de 2012.

*Álvaro Arranja é setubalense e  professor do Ensino Secundário.
Nascido numa família operária ligada à indústria conserveira, 
tem vários livros publicados sobre a História do Movimento Operário Setubalense.
É actualmente um dos dois deputados municipais que o Bloco de Esquerda elegeu em Setúbal.

 

SETÚBAL na REVOLUÇÃO de 25 de ABRIL 


Os acontecimentos do dia 25 de Abril de 1974, ocorridos quase exclusivamente em Lisboa, desencadearam um pouco por todo o país um conjunto de acontecimentos que transformaram um golpe de estado numa revolução.


A Revolução de Abril abriu as comportas de uma torrente social, durante décadas reprimida. O povo, como nas caricaturas de Bordalo Pinheiro, sacudiu a canga e tornou-se protagonista, surpreendendo o poder político e económico. Os movimentos populares ultrapassaram enquadramentos partidários, sindicais, religiosos ou outros.

Em Setúbal, a imprensa local (com particular relevo para O Setubalense), dá o maior relevo aos reflexos da Revolução na vida da cidade.

Logo nos dias seguintes a 25 de Abril tem particular relevo o dia 1º de Maio. A toda a largura da 1ª página, O Setubalense publica uma foto da Praça de Bocage totalmente cheia e relata pormenorizadamente os acontecimentos do dia, com especial relevo para o comício em que “intervieram Carlos Luís, Adilo Costa, Joaquina Soares, Abílio Ferreira, Tito Soeiro e Dimas Pereira, a quem a população aclamou com vibração”.

A nova realidade é reflectida nas páginas do jornal. É o caso do primeiro espectáculo de canto livre em Setúbal. Diz o jornal que decorreu a 26 de Maio, na Praça de Touros Carlos Relvas, onde “José Afonso abre o sarau, seguido de Francisco Fanhais, com agrado geral”.

Mas a singularidade de Setúbal no contexto da revolução vai decorrer do chamado “poder popular”. Comissões de moradores, trabalhadores, soldados e marinheiros, empresas ocupadas em autogestão, cooperativas e outras formas organizativas, surgiram por todo o país, sendo mais numerosas em zonas com uma tradição histórica de lutas sociais, como é o caso de Setúbal.

Apenas quinze dias após 25 de Abril de 1974, dão-se em Setúbal as primeiras ocupações. Habitantes de casas degradadas da Cova do Canastro, ocupam habitações vagas do Bairro Marcelo Caetano, bairro de “casas económicas” construído nos últimos anos da ditadura.

AS COMISSÕES DE MORADORES

Um dos movimentos populares mais significativos no pós-revolução, foi o aparecimento das comissões de moradores. Em Setúbal este movimento vai ter grande expressão. Embora possa ter havido casos de manipulação partidária, estas comissões são na sua grande maioria a expressão genuína de aspirações locais, fruto de um momento histórico no qual as populações sentem que, face a um enfraquecimento do poder do estado, é possível construir alternativas ligadas à resolução dos seus problemas concretos.

A imprensa (os jornais de Setúbal O Setubalense e Nova Vida) começa a referir-se a estas organizações em 22 de Julho de 1974, mencionando a eleição da Comissão de Moradores do Bairro da Azeda. Em 18.2.75 constituem-se as Comissões de Moradores do Bairro da Liberdade e do Bairro do Castelo Velho, sendo as primeiras a legalizar-se e a inserir-se no SAAL.

A 23 de Julho de 75 é eleito um Secretariado das Comissões de Moradores, do qual fazem parte os bairros: 25 de Abril, Monte Belo, Baptista/Tebaida, Quatro Caminhos, Reboreda, Amoreiras, Pescadores, Humberto Delgado, Maltalhado e Azeda.
Nas páginas de O Setubalense, um conjunto de reportagens dão-nos conta do trabalho de muitas Comissões de Moradores de Setúbal.

Em 13.8.75 fala-nos da Comissão de Moradores do Bairro dos Pescadores. Um elemento da Comissão declara que “o Tenreiro isolou os pescadores em bairros, mas nós queremos acabar com o ghetto e criar um ambiente novo”.

No Bairro Salgado, em 20.8.75, o jornal refere a ocupação de um edifício no qual foi instalado um infantário.

No Bairro Humberto Delgado, a Comissão de Moradores dinamizou a construção de zonas ajardinadas e de um parque desportivo. Publica um jornal, a Voz do Nosso Bairro. Tem por objectivo realizar cursos de alfabetização e organizar uma biblioteca.

A Comissão de Moradores do Bairro Alves da Silva ocupou uma antiga fábrica de conservas abandonada, para instalar um Centro Cultural e uma creche. A velha fábrica é limpa, removendo-se o lixo e as maquinas há muito abandonadas. Um elemento desta comissão, declara ao jornal em 9.7.75 que “as Comissões de Moradores e de Trabalhadores terão de arrancar para tomar conta do poder”.

No Bairro de Troino, as habitações degradadas são o principal problema. A Comissão de Moradores declara estar a tentar resolver o problema do Pátio do Sérgio, tentando obrigar a senhoria a fazer obras. Ocupou em conjunto com outras organizações, as antigas instalações da Mocidade Portuguesa, onde foi instalada a Casa da Cultura.

Ligada à acção das comissões de moradores, esteve a luta dos “500$00”. Em 30 de Maio de 75, numa reunião de inquilinos foi decidido limitar as rendas de casa na cidade a 500$00 por assoalhada. Perante a oposição dos senhorios, os aderentes a esta luta passaram a depositar a renda na Caixa Geral de Depósitos. Em 28 de Junho de 75, uma notícia informa que já estão feitos mais de 3000 depósitos de inquilinos aderentes a esta luta. A 14 de Julho de 75 um inquilino é julgado em tribunal e tem a solidariedade dos moradores da cidade, em manifestação à porta do Tribunal.


O PODER POPULAR

No Verão de 75 as reivindicações parcelares das comissões de moradores ou de trabalhadores, são gradualmente substituídas por um projecto global de tentativa de reorganização do poder político. A 21 de Junho de 1975, o Conselho da Revolução, no seu Plano de Acção Política, considerava que “a associação futura desses órgãos unitários populares poderá vir a constituir embriões de órgãos ou assembleias locais representativas dos interesses das populações”.

Em Setúbal, este projecto político alternativo é posto em prática com a formação do Comité de Luta em 30 de Setembro de 75. O Comité de Luta é eleito por todas as Comissões de Moradores, de Trabalhadores e de Soldados da cidade, e assume-se como um verdadeiro órgão de poder.
Em 5 de Novembro de 75, O Setubalense relata uma reunião do Comité de Luta, na qual são discutidos desde a tentativa de saneamento de um militar progressista no Regimento de Infantaria de Setúbal, a temas de urbanismo como a ocupação de casas e definição de rendas ou a coordenação com o projecto SAAL, até à organização de um Tribunal Revolucionário.

No auge deste forte movimento, os acontecimentos de 25 de Novembro vão impor um refluxo no poder popular e no projecto político alternativo assente na democracia directa.
Em Setúbal, um grande número de comissões de moradores e trabalhadores continuará a sua actividade, mas o reforço do poder do estado limitará decisivamente a sua acção. É simbólico o abandonar da designação de Comité de Luta em 29 de Março de 1976, substituído por Secretariado das Comissões de Moradores e de Trabalhadores.

Era o princípio do fim de um período histórico. Porém, podemos afirmar que apesar de não terem produzido rupturas definitivas ou irreversíveis na estrutura social, Comissões de Moradores, Trabalhadores e Soldados, empresas ocupadas em autogestão, cooperativas e outras formas organizativas, marcaram a Revolução de Abril.

Na Setúbal de 74-75, o povo ousou construir um esboço de sociedade alternativa que, embora não concretizado, se destaca na memória histórica das lutas populares do século XX português.

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