Primeiro Acto.
A coisa começou com a reportagem da RTP sobre uma visita de barco a Tróia organizada pelo Bloco de Esquerda, uma iniciativa com a intenção de mostrar ao país que o empreendimento Troia Resort está a ter como consequência clara a expulsão dos setubalenses das areias da península. Na reportagem, o jornalista do canal público afirmou que “o bloco critica as câmaras comunistas de Grândola e Setúbal”. Um erro: a câmara de Grândola é, desde há anos, dirigida por um presidente eleito nas listas do Partido Socialista, Carlos Beato.
Não sei se a informação da voz off da reportagem teve origem nalguma voz in dos autores da iniciativa política. Sendo o comentário da reportagem da responsabilidade do jornalista, o que nele é dito afecta só a sua credibilidade, mesmo que o tenha ouvido em discurso directo de um dos intervenientes. Aos jornalistas é exigido que não acreditem em tudo o que lhes é dito. É por isso que não basta ter-se uma câmara e um microfone para se ser jornalista.
Assim, se é lapsus linguae de político, dependendo da circunstância, deve ser corrigido na altura e o “produto final” apresentado aos telespectadores com rigor. Chama-se a isso saber distinguir a Notícia do fait divers – está bem, dirão alguns, conhecendo-se o jornalismo que se faz por aí, na base do bizarro, isso faria “ganhar o dia” a muitos portadores de microfones e carregadores de câmaras da nossa praça; todavia, se é referência mal-intencionada, o jornalista deve denunciá-la: “Os autores da iniciativa política nem sabiam quem mandava politicamente do outro lado do rio”. Isto seria uma notícia, mas não foi isso que aconteceu.
Se um jornalista não deve ser um megafone de tudo o que lhe é dito, um comentador não deve acreditar em tudo o que vê na tevê: dias mais tarde, o coordenador nacional autárquico do Bloco de Esquerda, Pedro Soares, também “entregou” a Câmara de Grândola ao PCP na sua coluna de opinião no “Jornal de Notícias”.
Se de uma reportagem se espera rigor, já que a sua falta assassina a credibilidade de um órgão de informação, de um artigo de opinião só se espera ver discutida a opinião, não a fiabilidade das informações que incluiu no argumentário. Parafraseando José Mário Branco, se um artigo de opinião é “uma arma”, não faz sentido dispará-la contra os próprios pés.
Disto isto sobre isto, fico-me por aqui sobre isto.
Rigor, minha gente. Avancemos.
Segundo Acto.
Miudezas, pensarão os que me lêem.
Não é bem assim. Em Tróia está a ser cometido um crime lesa-património ambiental e humano perante a vista de todos. Convenhamos que ser acusado indevidamente de participar ou calar o acto não será agradável para um partido de Esquerda. Entretanto o Pedro Sales já corrigiu o que escreveu na reprodução do seu artigo no Esquerda.net. Um conselho de amigo: devia começar por fazê-lo na sua próxima rubrica no “Jornal de Notícias. Rigor, lembra-se?
Terceiro Acto.
Parte dos militantes do PCP não acreditou na correcção e aproveitou o ensejo para dar continuidade, na base, à campanha que o seu “Avante” continua a fazer contra o Bloco de Esquerda, pelo menos a julgar pelo agitar constante das ondas da Net, onde o caso continua a ser “escalpelizado”, com calúnias e ofensas a tudo o que faça alusão ao Bloco de Esquerda.
Para certas pessoas do PCP, nem a denúncia sistemática de Tróia como crime do Privado contra o Público por parte do Bloco o faz merecer ser de Esquerda. Isso é que conta. O resto, os enganos quanto aos donos das câmaras municipais, é tempero para indefectível comer, areia para os olhos. Deixemo-nos de tretas e falemos do que interessa.
Quarto Acto.
Falemos então de areia, da areia de Tróia. Regressemos uns anos atrás, quando as torres da “Soltróia” ainda estavam para ser implodidas e o negócio ainda se fazia nos corredores apressados do governo de Sócrates.
Nesses tempos, do outro lado do Sado, no Concelho de Grândola, a sede do município tinha um presidente chamado Fernando Travassos. Este sim, da CDU, que dizia “bater palmas” ao projecto do Troia Resort. Preto no branco. A entrevista está disponível no “Setúbal na Rede”.
Ao contrário de alguns militantes do PCP que não perdoam os pecados individuais de qualquer membro ou candidato do BE, mesmo que independente, para daí teorizarem sobre as “origens de classe” de todo um partido, aqui deste lado procura-se encarar a coisa de outra maneira: distingue-se opiniões pessoais de posições oficiais, porque não se confunde prática política com arregimentação de carneiros acéfalos e obedientes.
Por isso afirmo, sem ironia, que tenho a certeza que muitos militantes do PCP não se reviram na opinião do “seu” presidente de câmara de Grândola. Atrevo-me mesmo a especular, não passa disso, que nem Fernando Travassos diria o mesmo do projecto de Tróia sabendo o que vai por lá hoje.
A gente do PCP, tal como a gente do Bloco de Esquerda, pagará o mesmo preço do bilhete de barco. É isto que conta. Mais uma razão para a presidente da câmara de Setúbal, do PCP, não ter deixado o Bloco a “pregar” sozinho contra Belmiro. Se fosse ao contrário, não duvido, “o bloco estaria feito com os interesses do grande capital”.
Epílogo.
Todavia, e para concluir este texto que já vai longo, atribuo a chegada tardia à luta por Tróia, por parte de Dores Meira, a uma lógica que está a levar à ruína a “honestidade e competência” com que os eleitos da CDU se apresentam ao eleitorado: a cedência à lógica do populismo e a procura desmesurada do prestígio e da credibilidade junto de quem a Esquerda sempre elegeu como adversários, os especuladores.
Vimos isto, também e infelizmente, na incapacidade do executivo do PCP de Setúbal se ter demarcado da “Nova Setúbal”, apesar do PCP da oposição ter sido o único partido a votar contra a urbanização, através da sua vereadora Regina Marques. O PCP, no poder em Setúbal, devia orgulhar-se disso, e não trair um voto de Esquerda consequente que já foi o seu. O PCP, na oposição em Grândola, devia autocriticar-se da posição que tomou quando era governo.
Autocrítica não significa autoflagelação, tampouco fraqueza de convicções, é um sinal singelo de que as celulazinhas cinzentas funcionam. Como todos sabemos, quando um cérebro deixa de funcionar resta ao corpo apenas o nome por que é conhecido. É muito pouco para se viver.
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