29.7.09

Contribuição para o debate acerca da localização da Feira de Sant’Iago

O texto que se segue foi publicado ontem no sítio setubalense da candidatura do Bloco de Esquerda dedicado às eleições autárquicas . Trata-se de um texto de opinião que não reflecte a posição oficial da candidatura do Bloco de Esquerda. O facto do texto ter sido publicado só prestigia o partido.

"O candidato do PSD, Jorge Santana, assim como a candidata do PS, Teresa Almeida, decidiram trazer a localização da Feira de Sant’Iago para o debate eleitoral autárquico. Ambos os candidatos já fizeram questão de prometer solenemente o retorno do certame ao local onde esteve durante muitos anos, a Avenida Luísa Todi. Para “respeitar a vontade dos setubalenses”, dizem.

A possibilidade da feira ser deslocalizada para outro local que não o centro da cidade já havia sido avançada por Mata Cáceres, no final dos três mandatos em que o PS ocupou a cadeira da presidência. O contexto em que fez essa suposição foi o das queixas de moradores da Avenida Luísa Todi, vizinhos da feira, quanto aos ruídos produzidos pelos equipamentos e até contra a utilização das entradas dos prédios como WC públicos.

Para além dos problemas de ruído e sanitários, havia outra questão a que dar resposta: a realização da feira em plena avenida obrigava ao encerramento de um dos sentidos do tráfego automóvel em parte substancial da artéria. Considerando que a data da feira coincide com uma época em que o movimento automóvel em direcção às praias da Arrábida se faz com mais intensidade, havia também um sério problema de trânsito. Aliás, nos dias em que a feira tinha mais movimento, o problema amplificava-se de sério em caótico, com viaturas estacionadas por tudo quanto era nesga de espaço, o corolário-mor dessa cultura dominante em Setúbal segundo a qual os peões foram inventados só para atrapalharem o usufruto dos passeios pelos automóveis.

Carlos Sousa, presidente eleito e destituído pela CDU, decidiu construir um local de raiz para a realização da Feira de Sant’Iago, na localidade de Manteigadas, na fronteira entre a zona urbana e “rural” do concelho. Para tal, foi constituída a “Associação Parque de Sant’Iago” constituída pela a Câmara de Setúbal, a Associação Empresarial da Região de Setúbal ( AERSET) e a Região de Turismo de Setúbal Costa Azul (RTS). O então vereador do turismo, André Martins, da CDU, explicava, em Junho de 2004, ao digital “Setúbal na Rede” que o equipamento iria “projectar Setúbal a nível regional, nacional e, mesmo, internacional” .

Logo naquele primeiro ano de feira nas Manteigadas muitos populares torceram o nariz ao local: devido a uma integração social “exemplar” feita pelo PS na zona o bairro já ocupara por diversas vezes a página de assuntos policiais dos jornais do burgo; por outro lado, a proximidade da Bela Vista também contribuía para retirar solenidade aos carroceis e às barracas das “farturas”. Os comerciantes, no entretanto, tentaram tirar partido da situação protestando contra os preços que a câmara pretendia cobrar pela estada de quinze dias na feira.

Mais tarde, apesar da capacidade alargada de estacionamento, não se conseguiu evitar que a avenida António Sérgio tivesse trânsito automóvel congestionado… nos passeios. Como o estacionamento era pago e mal vigiado (ocorreram queixas de assaltos a viaturas) e com medo de deixarem o carro “no escuro”, muitos automobilistas enfiaram as viaturas no interior do bairro da cooperativa ao ponto dos moradores não conseguirem entrar. Houve mesmo quem chegasse e desse com um automóvel estranho estacionado no interior do seu quintal… Esta situação foi corrigida nos anos posteriores, por pressão da cooperativa, com o controlo de entrada de viaturas no bairro – mesmo assim, com muitos estranhos resultantes dos muitos livre-trânsitos emitidos pela câmara…

Instalada numa encosta que tem do outro lado uma área habitacional, uma autêntica caixa de eco, seria de esperar que a feira tivesse um impacto sonoro negativo junto dos habitantes mais próximos. Tal obrigaria a que se tomassem algumas medidas. Todavia, a realidade demonstrou que isso não constou das preocupações dos instaladores.

Pelo contrário. E chega-se à face menos visível do funcionamento da feira, que foi denunciada mas que não teve eco nesses defensores dos “interesses dos setubalenses”: a forma como a feira conviveu com a população mais próxima.
Deixou-se que os vendedores instalassem megafones virados para as casas das pessoas, colocaram-se altifalantes do sistema de som da feira a pouco mais de três metros dos quartos das vivendas. E, a julgar pelo volume da cacofonia, o controlo de decibéis permitidos pelos equipamentos – uma obrigação camarária – foi inexistente.

Para se compensarem os comerciantes pelos danos da “deslocação”, aumentou-se o horário nocturno do funcionamento da feira e, como se tal não chegasse, permitiu-se que horas depois do fecho do recinto ficassem no interior do espaço alguns feirantes foliões a desrespeitar o sono das casas próximas. A “sensibilidade” foi ao ponto da recolha do vasilhame ser feita a meio da madrugada no meio dos estrondos de vidros a partir – situação que foi corrigida depois dos protestos dos moradores.

Entretanto, as respostas da direcção da feira a quem se queixava indiciava que o motivo resultaria da “má vontade”, apesar dos locais começarem por argumentar que concordavam com a feira no local…
A câmara foi questionada directamente quanto à qualidade de vida resultante da forma como o evento estava a ser organizado, o resultado foi a colocação de algumas árvores esqueléticas entre a feira e as habitações. “Vão insonorizar, mas não é para já”, advertiu avisadamente o vereador “verde”, André Martins.

Apesar do rol de desfuncionamentos e incapacidades camarárias, não tenho dúvidas que se se fizesse uma sondagem a maioria dos habitantes locais concordaria com a feira nas Manteigadas. Acredito, também, que parte da população setubalense ainda tenha saudades da feira na Avenida Luísa Todi – excepto aqueles que se queixaram da confusão, do barulho e da higiene…

Se há algo que caracteriza os setubalenses é a nostalgia. A lembrança do peixe abundante nas águas do rio, dos pescadores e das docas cheias de barcos, das fábricas a laborarem e dos fim-de-tarde das ruas apinhadas de gente que vinha do trabalho, da voz das pessoas e das televisões que saíam à noite das casas do centro da cidade, do tempo em que se ia a Tróia sem se raspar o fundo da carteira… sim, provocam nostalgia. Mas o retorno da feira para a Avenida Luísa Todi é fraca compensação pelo que se perdeu.

Setúbal já não é a mesma de outrora, nas actividades económicas e nas zonas onde vivem os setubalenses. Já não é só centro, alguns “bairros nobres” à volta e o povo pobre nas encostas. Setúbal cresceu… em direcção às Manteigadas, e a Freguesia de S. Sebastião, onde fica este bairro, é a maior da cidade e a maior do país, em população e em problemas. Problemas de Setúbal.

Conhecendo-se a forma, sempre discriminatória, como os partidos que agora reclamam o regresso da feira à Avenida Luísa Todi trataram a zona nascente de S. Sebastião, não admira que sintam que a Feira de Sant’Iago nas Manteigadas não seja a “sua” feira. Por uma razão simples e subconsciente: não consideram que ali, bairro suburbano de trabalhadores e desempregados, de minorias étnicas, seja Setúbal.

Ao contrário deles, do PSD, do PS e, como não podia deixar de ser, do PP, entendo que está “ali”, em S. Sebastião nascente, o desafio maior para quem pretende governar a cidade. Tirar a feira “dali” não seria “restituir a feira aos setubalenses”, seria roubar a feira do sítio onde há mais setubalenses… e passar-lhes um atestado de menoridade cidadã.

Quem assim pretende agir, desta forma “populista”, demonstra, pura e simplesmente, que não tem mais projecto para a cidade que não a demagogia barata. Para não falar do que se esconde atrás dessa fachada de “tradição”: o preconceito mais abjecto.

Falar da Feira de Sant’Iago para a melhorar, denunciar a falta de respeito da câmara para com os vizinhos da feira, essa seria a forma responsável de fazer política. Assim, “tradição” o tanas, caça ao voto com as piores armas. Tenham vergonha na cara."

Assinado por
José Carlos Tavares da Silva

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